Apesar de avanços com as ações afirmativas, presença negra nas universidades ainda é desigual
“Entrei na universidade com a intenção de me construir educador por meio do conhecimento, com a intenção de contribuir e transformar a realidade da educação da minha cidade”, afirma Ruan Lion de Sousa, 22 anos, estudante do curso de Licenciatura em Matemática.
Natural de Guaraí, no Tocantins, e de origem pobre, cursou boa parte de seus estudos em escola pública. Ruan faz parte dos quase nove milhões de alunos matriculados no ensino superior no país. Mas, também faz parte de outra estatística, mais específica: a de negros nas universidades.
Às vésperas do Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro), data para refletir sobre o racismo estrutural no Brasil, esta reportagem especial traz personagens e dados sobre a presença negra nas universidades, que vem aumentado nos últimos anos, mas ainda está longe do ideal.
É que, mesmo representando a maioria da população brasileira, os negros ainda são minoria no Ensino Superior e também representam menos de um terço das pessoas com esse nível de escolaridade completo. Dados do Censo de Educação Superior 2019, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), mostram que o Brasil tem mais de 8,6 milhões de pessoas matriculadas em Instituições de ensino superior, mas apenas 613 mil se declararam pretas, o que corresponde a pouco mais de 7% do total.
Na série histórica de ingressantes por raça, de 2013 a 2019, 7.028 estudantes autodeclarados negros (pretos e pardos) ingressaram na Universidade Federal do Sul e sudeste do Pará (Unifesspa). É o caso de Ruan, que sempre teve os estudos como uma prioridade muita definida. “Meus pais sempre me mantiveram consciente e instigado a ‘crescer na vida’ por meio dos estudos. Ingressar numa universidade pública mostrou-se como uma oportunidade incrível e que tenho buscado aproveitar ao máximo”, afirma.
Por compreender que a universidade não se limita somente às salas de aula, o estudante passou boa parte da graduação sendo bolsista de projetos de ensino, pesquisa e extensão. Foi assim que pôde ampliar horizontes e viver experiências, como conhecer diversas cidades e estados ao participar de congressos e eventos científicos.
Para Ruan, a participação de alunos negros nas universidades tem se tornado cada vez mais real. “Pessoas negras têm tido mais visibilidade para mostrarem seu potencial e que, infelizmente, está sempre vinculado a uma cicatriz de preconceito, o que pode acabar afetando a confiança e disposição. Mas, a cada dia, essa questão vem sendo superada, o que me deixa feliz, assim também como ver a representatividade de outras minorias no âmbito universitário”, diz.
Falta presença também no magistério - É desproporcional a participação de professores/as autodeclarados negros no magistério superior: apenas 16% do total, segundo dados mais recentes do Inep. Essa disparidade escancara a realidade de assimetrias: quanto maior o grau de escolaridade do professor, maior a desigualdade racial.
“É importante considerar que o acesso de pessoas negras ao nível superior ainda é muito recente na história do Brasil. Isso dialoga diretamente com uma sociedade que teve como base leis que proibiam pessoas negras de frequentar a escola. Nesse sentido, a política de cotas é extremamente significativa para a reparação das políticas de exclusão”, pondera Miriam Santos, que, desde 2020, atua como docente no campus da Unifesspa em São Félix do Xingu.
Primeira da família a ter ensino superior, para ela “é urgente que tenhamos mais professores negros ocupando esses espaços, não só para a população negra enquanto representação - no sentido de enxergar esses espaços como possíveis - mas também para que a população branca aprenda enxergar e considerar corpos negros como produtores de conhecimento, isso é imprescindível para a desconstrução do racismo”.
Especialista em Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a professora chama atenção para as condições de acesso e à não permanência da população negra na escola na educação básica. “É nítida a evasão dos estudantes negros ao longo de sua formação, exclusão essa que acontece por diferentes razões. Além do racismo institucional, há que se considerar a miséria: muitos jovens negros precisam vender o futuro por um prato de arroz com feijão”.
Sem políticas públicas para a permanência, não é possível haver continuidade. Cenário semelhante é visto no ensino superior: trabalhar e estudar é a realidade da maior parte dos jovens negros que, além de receber menos, fora de suas cidades de origem, ainda mandam dinheiro para casa. “As bolsas de pesquisas alcançam muito pouco os jovens negros. Muitas vezes, os professores, em sua maioria branca, escolhem seus pesquisadores também “por afinidade”. Daí sem uma base de pesquisa, torna-se difícil seguir a vida acadêmica”, lamenta.
Aos poucos, o cenário caminha para mudar. É o que acredita o futuro professor, Ruan Lion, do início da matéria. "É preciso mencionar que o próprio IEA e a Unifesspa têm sido um ambiente muito diverso e inclusivo. Nosso diretor do instituto, inclusive, é um homem negro, de universidade pública, que, com certeza, tem inspirado muitos alunos e sempre tem se mostrado como um grande apoiador de todos nós acadêmicos".
“O racismo ainda estrutura o funcionamento da sociedade” – De acordo com a professora Maria Cristina Alencar, que coordena o setor de Apoio à Diversidade Étnico-Racial (CADER), a exclusão das pessoas negras do Ensino Superior é ainda uma herança do sistema colonial sobre o qual se erigiu o país.
A pesquisadora frisa que a população negra tem sido tratada como mercadoria, tendo negados os direitos básicos e o acesso às riquezas por ela produzida, enquanto a população branca é historicamente beneficiada. “Pesquisadores/as e intelectuais negros têm destacado que no Brasil ainda há muito o que se fazer para oferecer às pessoas negras, que têm sido discriminadas e excluídas, um tratamento diferenciado para reparar a dívida histórica do país que os torna vítimas do racismo e de outras formas de discriminação”.
Na Unifesspa, o Núcleo de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (Nuade) tem fomentado importantes debates para um ambiente universitário que respeite e valorize a diversidade. Para isso, realiza seminários, cursos de extensão e oficinas, promovendo o debate sobre o racismo com a comunidade acadêmica em interlocução com a sociedade civil, os movimentos sociais e a rede de educação básica estadual e dos municípios da região de abrangência da Instituição.
“Contudo, ainda é necessário que as instâncias universitárias, o corpo docente e o corpo técnico-administrativo cada vez mais participem dessas ações e eventos promovidos pelo Nuade, mas que, principalmente, possam internalizar e tomar para si a luta antirracista e compreender o racismo não apenas pela discriminação que pessoas negras sofrem por conta da cor da sua pele”, pontua Maria Cristina Alencar.
Ainda de acordo com a pesquisadora, o racismo pode estar impregnado nas intolerâncias religiosas e também nos discursos de competição econômica, de mérito e do alcance da excelência. “São essas várias modalidades de racismo que compõem, junto com o preconceito racial de marca - ou seja, o preconceito que se vincula à avaliação negativa do outro em função de sua aparência física, seus traços fenotípicos -, as práticas racistas no nosso cotidiano. É preciso desconstruir, desmontar nas suas bases esse processo”, diz.
Ações afirmativas – Com o intuito de contribuir para a mitigação das desigualdades, as políticas de ações afirmativas são importantes instrumentos. Na Unifesspa, é possível citar as políticas de ingresso:
- Cotas nos cursos de graduação para estudantes autodeclarados negros (pretos e pardos) no SiSU, cumprindo a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012;
- Cotas para ingresso de estudantes autodeclarados negros (pretos e pardos) nos programas de Pós-graduação;
- Para os candidatos autodeclarados quilombolas, há reserva de duas vagas em cada curso de graduação, cujo ingresso se realiza por meio do Processo Seletivo Específico. Processo Seletivo Indígena e Quilombola (PSIQ);
- Criação da Comissão Permanente para Diversidade, Heteroidentificação e Etnicidade, que regulamenta o procedimento de ingresso para candidatos autodeclarados negros (pretos e pardos), indígenas, quilombolas e povos do campo em vagas reservadas nos cursos e processos seletivos outros da Instituição.
Iniciativa pioneira - Na Unifesspa, historicamente, o N’Umbuntu, criado em 2012, foi pioneiro na discussão sobre as relações étnico-raciais. Desde então, o Núcleo, que integra ensino, pesquisa e extensão, se constitui também como um Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, que integra o Consórcio Nacional de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros (CONNEABs).
Além das atividades acadêmicas, o N’Umbuntu promove o retreitamento do diálogo entre a universidade e movimentos sociais na luta antirracista dentro e fora da Instituição.
Fonte: Unifesspa
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